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Pavio curto na mira dos especialistas

Algumas pessoas simplesmente não conseguem frear a agressividade. Para elas, não precisa muito para que estourem com quem ou o que quer que seja, não importando o motivo. Comumente são apontadas como indivíduos de "pavio curto". Porém, o que para muitos parece um simples padrão de comportamento, uma forma muito própria de reagir às situações e à vida, pode esconder, na verdade, uma doença. Chamado de Transtorno Explosivo Intermitente (TEI), o problema vem ganhando notoriedade e foi criado um ambulatório especializado no assunto dentro do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo (USP).

Para identificar o TEI, é preciso analisar como é o comportamento diante de situações que geram raiva. Não é qualquer manifestação do tipo que pode ser caracterizada como TEI. O xingamento no trânsito, por exemplo, é algo bem comum e próprio dos engarrafados e atribulados dias de hoje. Mas os especialistas avisam: se você perde o controle, xinga, briga, bate, quebra objetos e depois se arrepende, é bom ter cuidado. Se não consegue controlar seus impulsos agressivos e tem dificuldade de lidar com a raiva, isso pode ser sinal da doença. A questão é séria e o ambulatório de TEI da USP está convocando pessoas com esse perfil para análise e tratamento.

As coordenadoras do serviço, Christina Lahr e Vânia Calazans, conceituam o transtorno como incapacidade em controlar impulsos de agressividade. As conseqüências advindas do mal são diversas: instabilidade familiar, sensível piora do convívio cotidiano, perda do emprego, exclusão familiar e escolar, dificuldade nos relacionamentos interpessoais, problemas financeiros e hospitalizações decorrentes de lesões geradas em brigas ou acidentes.

A psicóloga Paula de Menezes Karam, do Instituto de Psiquiatria explica que, "no portador do transtorno, o impulso para agir agressivamente é mais rápido que o seu pensamento, diferente de um indivíduo nervoso, não-doente, que consegue controlar seu impulso de agir".

De acordo com Christina Lahr, as causas biológicas ou físicas são atribuídas a disfuncionalidade na neurotransmissão da serotonina; alterações nas regiões cerebrais ligadas à emoção e memória (sistema límbico) e/ou que planejam e controlam os impulsos (lobos frontais). As causas emocionais ou psicológicas são devidas a um histórico familiar permeado por instabilidade, explosões verbais, abusos físicos e emocionais e, oriundos de oscilações do humor e vícios.

De acordo com o que descreve a psicóloga especializada em Terapia Cognitiva (TC), "a aprendizagem por modelação impede o desenvolvimento de um freio inibitório adequado sobre os impulsos, levando a criança a repetir as mesmas características na vida adulta". As atitudes explosivas aparecem quando a pessoa se confronta com situações que as fazem evocar experiências frustrantes e ameaçadoras e tem por finalidade compensar sentimentos de insegurança e auto-estima baixa. O comportamento agressivo começa na infância, tem seu pico aos 30 anos e declina aos 50. Infelicidade e/ou lesões foram documentadas em 87,5% dos sujeitos e apenas 12,5% procuram ajuda, explica.

Em um de seus artigos, Christina apresenta um estudo baseado em dados da National Comorbity Survey Replication, realizada com mais de nove mil adultos americanos, que demonstrou que 7,3% tinham episódios crônicos e 3,9% apresentaram ocorrências pontuais, levando crer que o TEI, apesar de pouco conhecido é consideravelmente mais prevalente do que se pensava. Ele passa despercebido pela comunidade psiquiátrica porque esses indivíduos não costumam procurar ajuda como os deprimidos ou ansiosos. A maioria recebe tratamento para problemas emocionais, mas não para sua raiva, lamenta a especialista.

Depois de ouvir sobre como se comporta uma pessoa com TEI, o motorista João (nome fictício), de 46 anos, que é casado e tem três filhos, acredita que se encaixa na descrição. Ele conta que já não saberia mais contar as vezes que partiu para a agressão tanto no trânsito como em rodas de colegas. "Não sei o que me dá que eu não penso duas vezes para ir para cima do cara", conta, lembrando que já bateu até em juiz de futebol de um jogo de várzea. No trânsito, também não se conteve por várias vezes e saiu "no braço" com algumas pessoas. "Teve um desses que eu dei um chute e amassei a porta dele de raiva", confessa.

Vergonha - Quem ouve João falar sobre os casos, de forma despachada, pode pensar que ele não está ligando muito para o problema. Só que, "depois que o sangue esfria", como diz, vem a sensação de arrependimento e o receio de encontrar de novo a pessoa. O comportamento de alguém acometido pelo Transtorno Explosivo Intermitente, apesar de não ser premeditado, acarreta sentimento de culpa, vergonha e arrependimento, explica a psicóloga Paula Karam.

Ainda segundo ela, se não for tratado, o problema pode gerar depressão, ansiedade, abuso no uso de substâncias químicas, isolamento social e outras doenças psíquicas. "Como o paciente não consegue conter a agressividade, prefere manter-se isolado e recluso para não manifestar seus impulsos", frisa.

Trânsito - Dirigir, por si só, já é uma atividade com grande potencial estressante. Risco de acidentes, engarrafamentos, imprudência e imperícia são elementos que contribuem para que seja criado um ambiente ideal para manifestações agressivas e de raiva. Na televisão e nos jornais, periodicamente se tem notícia de brigas e agressões, inclusive com ferimentos graves e morte. A psicóloga Christina ressalta que pesquisas têm mostrado que muitos portadores do Transtorno Explosivo Intermitente envolvem-se em acidentes veiculares (todos os tipos de transportes de passageiros) em virtude da raiva expressa no trânsito.

A especialista salienta que a raiva no trânsito é um fenômeno que merece atenção, face aos relatos cotidianos dos sérios incidentes verificados. Apesar de não ter uma definição padrão é uma situação na qual não raro um motorista ou passageiro tenta matar, machucar ou intimidar um pedestre ou outro motorista ou tenta destruir seu carro em um incidente de trânsito. Ela conta que vários estudos estabelecem que a raiva no trânsito é uma experiência comum e perigosa.

A psicóloga apresenta uma pesquisa nacional nos EUA com cerca de 1.300 motoristas que mostra que 30% reclamaram de outros motoristas; 17% já haviam gritado com outros motoristas; 3% já perseguiram outros motoristas ou os impediram de ultrapassar; e, entre 1% e 2% já saíram de seus carros para atingir ou discutir com outros motoristas, já bateram em outros carros de propósito ou já carregaram uma arma.

Num ambiente desse não há como não ficar irritado, reconhece o supervisor de vendas Flávio Previate, de 37 anos, casado e pai de dois filhos pequenos. "Não consigo sair de carro sem ficar com a cabeça cheia", descreve. Ele se diz indignado com a forma como as pessoas agem no trânsito, especialmente em Cuiabá. Conta que já dirigiu em algumas das principais cidades dos grandes centros, mas o lugar onde mais fica irritado é a Capital mato-grossense.

Para ele, além de não respeitar regras básicas como dar preferência, ligar a seta antes de virar e seguir a sinalização, os motoristas são mal educados demais. Segundo o supervisor, não existe uma pessoa na cidade que não tenha discutido ou xingado no trânsito. Em seu caso, Flávio diz preferir não bater boca, mas não se furta de chamar a atenção de quem ele acredita estar errado. "Nunca fui rude, mostro que ele não sabe dirigir", garante. E a raiva, diz, logo passa, é de momento.

Diferente do que aconteceu com um conhecido dele. Flávio descreve que o tal motorista chegou a quebrar os vidros de um ônibus com taco de beisebol por causa de uma "barbeiragem" do condutor do coletivo.

O caso provavelmente seria alvo de estudo do pessoal do ambulatório de Transtorno Explosivo Intermitente.


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